Arlete & Djalma

Insensibilidade Social

Autor: Djalma Freire

Hoje é feriado católico em Barcelona. Tudo fechado: comércio, bancos, serviços não essenciais, supermercados, inclusive os shopping centers. Só funcionam os meios públicos de transporte, os hospitais e postos de atendimento de urgência, as farmácias de plantão e alguns bares e restaurantes. Comento com uma amiga brasileira, em rápida visita à cidade, esse fato do fechamento geral em feriados, e como isso me impressionou quando cheguei à Espanha, o ano passado. Falo que aqui, quando é feriado, tudo fecha de verdade. Essa é uma conquista dos sindicatos, em defesa dos assalariados, adotada na legislação trabalhista e fielmente obedecida pelas autoridades públicas: se é para ter feriado, então que aproveitem todos, a imensa maioria possível dos trabalhadores, sem muitas exceções. Faço alusão comparativa com a situação brasileira, onde a fraqueza do movimento sindical terminou por abrir uma série enorme de abusos no setor comercial, que não obedece mais a feriados: quase tudo é aberto, especialmente supermercados e shoppings. Olho pra minha amiga e percebo que não houve interação. O que falei não a tocou em absoluto. Seria como se falasse de coisa sem importância, algo completamente trivial. A comprovação veio imediata. Olhou para mim e falou: “Ah, na ultima sexta-feira santa, os shoppings estavam todos abertos. Achei ótimo! Fui fazer minhas compras.” Esse fato me levou a refletir sobre um tema que, de quando em vez, me assalta, provocado sempre por situações semelhantes : por que pessoas religiosas, como era o caso, que valorizam tanto os valores religiosos e a caridade, são muitas vezes tão insensíveis às injustiças sociais? E por que, um velho esquerdista como eu, sem religião nenhuma, materialista convicto, me comovo tanto com o drama das desigualdades sociais, e me solidarizo sempre e imediatamente com os socialmente injustiçados? Cada vez mais me parece, que pelo menos parte da resposta, está no contraponto entre caridade e direito, valores muito essenciais nas duas perspectivas. Caridade é a ação de uma pessoa face ao seu semelhante provocada por um sentimento de piedade, de compaixão. O outro é visto sempre como um ser em inferioridade pessoal, alguém que desperta pena, um “desprotegido da sorte”. Em conseqüência tenho pena dele, e pratico a caridade, dando-lhe uma esmola ou o ajudando de alguma forma. A relação é inteiramente pessoal, pessoa a pessoa. Não guarda nenhuma relação com a organização social, uma avaliação sobre ela, sobre sua correção ou incorreção, sobre sua justiça ou injustiça social. E é também, ao mesmo tempo, uma relação interessada, eminentemente privada e com algum resquício de egoísmo envolvido. Presente nela há sempre um certo sentimento de busca de compensação futura, de proveito pessoal de quem a pratica, para alcançar um benefício pessoal, no Além: “Deus tá vendo! Sou um homem piedoso, um bom cristão, pratico a caridade, ajudo os meus irmãos desvalidos da sorte.” Direito, por sua vez, envolve sempre uma percepção do outro como um ser humano e social, alguém portador de requerimentos que lhes são devidos pela sociedade na qual está inserido e, pelo fato de ser cidadão - um igual a todo e a qualquer um de seus semelhantes – alguém com capacidade inalienável de receber proteção e de legitimamente reivindicá-la. Não há portanto aqui lugar para uma relação pessoal, pessoa a pessoa, mas uma relação eminentemente social, um reconhecimento do outro como ser social, igual a mim, embora, naquele momento, em desvantagem. Desvantagem que é uma agressão aos seus direitos de cidadania, e que precisa então ser corrigida. Elegendo o direito como um valor pessoal essencial, não vejo nunca o outro como um desvalido da sorte, alguém que merece compaixão, um ser humano inferior a mim, por quem tenho piedade e então lhe dou a minha caridade. Ao contrário, vejo-o como vítima de um sistema social injusto e desumano, que de alguma forma contribuiu para terminasse naquela situação de evidente degradação social. Posso eventualmente auxiliá-lo, dando-lhe uma ajuda, para mitigar um pouco a sua situação, sem procurar vantagem pessoal nenhuma e sem nunca esquecer que é a sociedade politicamente organizada, o Estado, que tem de fato a obrigação de protegê-lo e assisti-lo. É uma reflexão dessa ordem que me coloca em certa restrição ao Programa Bolsa Família, tal como está formulado pelo governo Lula. Não desconheço nunca a enorme importância social do programa para uma parcela muito grande dos pobres e miseráveis brasileiros. A sua significação é fundamental, e aí estão os números de mais de 11 milhões de famílias beneficiadas para dar um testemunho. Só a direita mais radical ou a esquerda mais ensandecida pode atacar o programa. Mas daí a legitimá-lo integralmente, tal como se encontra, vai uma grande distancia. Gosto tanto do programa, na realidade brasileira, que ao invés de tê-lo como uma ação assistencialista, como é hoje, passível de exploração eleitoreira ou de ampla deformação, já que sujeito aos azares da política, queria vê-lo transformado e institucionalizado como direito de cidadania, inscrito nos códigos legais de nosso país. Um direito passível de ser então demandado e reconhecido pelos tribunais. E simplesmente me lixo para a reclamação interesseira e habitual da direita, que sempre afirma que programas sociais desse corte, em geral estimulam o desinteresse pelo trabalho e a preguiça dos mais pobres. O mercado – tão enaltecido e incensado pela direita - que concorra com os direitos de cidadania, pague mais pela mão de obra que contrata, ofereça melhores salários e condições de vida ao trabalhador, e assim faça com que ele se retire dos programas de assistência social. Creio que nos limites de uma simples crônica é difícil analisar completamente fatos sociais tão complexos como caridade versus direito, programas assistencialistas versus programas de garantia de direitos. Evidente também que as características de personalidade de cada um, sua situação de classe social, a cultura geral e a cultura familiar têm um peso e interferem em maior ou menor grau nessa questão de caridade versus direito. Todavia, em termos gerais e amplos, penso que o que disse aqui pode ser um dos aspectos interessantes da discussão.

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