Arlete & Djalma

É Difícil Ver Seu Lado

Autor: Djalma Freire

Estou sozinho na recepção de um hotel em Toulouse, cidade francesa próxima à Barcelona, numa rápida escapada de fim de semana, longe de minha mulher, sábado e domingo, e converso em português com a recepcionista, uma jovem árabe que tem um namorado de Portugal, trabalhador na França, e naturalmente fala um pouco de nossa língua. De repente, uma senhora baixinha, franzina, de uns cinqüenta anos, que chegara há pouco, nos interrompe, amplamente receptiva: – “ Ah, você é do Brasil?” Alegre, confirmo, e o diálogo se estabelece, extremamente cordial. Pergunta se sou turista. Explico que estou vivendo em Barcelona há quase um ano. Ela se identifica como espanhola, casada com português, e pergunta sobre a situação atual na Espanha. Informo que a situação social é difícil, há um enorme contingente de desempregados- mais de quatro milhões - em função da crise. Ela ouve e logo evidencia a sua posição a respeito, essencialmente amarga: – “É… tudo é culpa do governo socialista… Estimularam a vinda desses latino-americanos, oferecendo emprego, e agora eles ocupam os lugares dos espanhóis e estes estão no desemprego, na pior…” Tento explicar que a Espanha, na euforia econômica, fez a opção errada: apostou no cassino financeiro e na especulação imobiliária – daí a utilização da mão de obra mais barata dos latino-americanos – e agora, com a crise, os apartamentos invendáveis à falta de demanda, a construção civil paralisada, grassa o desemprego…has, um pouco mais disfarçado. A mulher não se conformou: – “Nada disso. A culpa é dos socialistas. Onde eles governam é crise na certa… Me diga onde há um governo socialista que preste? Não viu a Rússia?…” Tento explicar que os socialistas foram responsáveis pelo desenvolvimento e modernização da Espanha, com os 14 anos de governo de Felipe Gonzalez, retirando-a do atraso e obscurantismo impostos pela direita espanhola, por mais de quarenta anos, com o regime de Franco. A mulher não aceita os meus argumentos, torna-se agressiva, e de repente me joga na cara: – “Você deve ser rico para pensar assim.” Sorrio e informo que não sou rico, na verdade sou professor universitário, ligado à universidade pública brasileira. Foi aí que a mulher escancarou toda a sua revolta: -“ Eu não disse?!!! É um privilegiado! Alto salário e férias de mais de dois meses ao ano!” E raivosa, sem mais conversas, sem me dar tempo para contra-argumentar, entrou no elevador que se abriu às suas costas e se mandou. Um tanto consternado e aturdido, fico então analisando por que pessoas simples do povo se deixam inéfluenciar por posições defendidas pela direita política e terminam apoiando teses que são de fato de interesse de grupos ricos e privilegiados. E assim assumindo posições que na verdade contrariam os seus legítimos interesses de despossuídos e excluídos. Chamar de ricos e privilegiados os professores universitários brasileiros, que padecem anos e anos de baixos salários, que mal dá para uma vida com dignidade?! Francamente! Lembro então de uma cena ocorrida no início dos anos 90, em São Paulo, quando fazia o doutorado na Fundação Getúlio Vargas. Morava na época num reduzido apartamento de sala-quarto,sanitário e cozinha, em um edifício na Rua Frei Caneca, na Consolação, próximo à escola. No térreo, em um pequeníssimo espaço de um quarto minúsculo – quarto,sala e cozinha ao mesmo tempo – mais um sanitário mínimo, viviam o zelador, sua mulher e dois filhos jovens, entre 15 e 18 anos, numa evidente situação de desconforto. O zelador, “seu” Ivonildo, era de Caruaru, e como nordestinos ambos, fizemos uma boa camaradagem. Era prefeita de São Paulo a Luiza Erundina. No início de seu governo, considerando a evidente desigualdade no pagamento do imposto predial e territorial urbano entre imóveis grandes e pequenos, situados em áreas nobres e marginais, claramente em beneficio dos imóveis grandes e bem situados, propôs uma lei de reforma do tributo imobiliário, onerando de forma mais forte as grandes propriedades, mas reduzindo substancialmente o tributo para a classe média e isentando completamente de contribuição os imóveis das camadas mais pobres. Foi uma guerra! Um tumulto político! A grande imprensa,a televisão e os políticos populistas e conservadores saíram a campo para denunciar o absurdo da proposta, a enorme carga tributária imposta aos contribuintes, que nada praticamente recebiam de uma prefeitura que não cuidava bem da cidade, cheia de lixo não recolhido no tempo devido e de buracos nas ruas. Como se atrevia a cobrar mais impostos dos cidadãos paulistanos, todos eles já cansados da espoliação a que eram submetidos por um poder público municipal inoperante e perdulário? E a batalha contra o projeto da prefeita Erundina continuou forte, por semanas a fio, a dominar os meios de comunicação, antes que a Câmara Municipal decidisse a questão. Uma manhã, saindo para a FGV, encontro “seu” Ivonildo na portaria do prédio, jornal sensacionalista à mão. Recebeu-me furioso. Estava revoltado contra o projeto da prefeita Erundina: “- um absurdo, um despropósito, uma agressão aos direitos da cidadania, uma espoliação do poder público contra os pobres cidadãos desprotegidos. E isto por uma prefeitura que não fazia nada. Essa prefeita evidentemente não presta. Aliás, o que se podia esperar, ligada a esse tal de PT…” Tentei argumentar que não era bem assim. Que o projeto de lei visava na verdade corrigir injustiça social evidente na cobrança dos tributos imobiliários na cidade de São Paulo, onde os ricos pagavam muito pouco por suas grandes mansões e apartamentos de luxo, enquanto os mais pobres e a classe média pagavam mais relativamente. Não adiantou. “Seu” Ivonildo continuava bravo, vituperando contra a prefeita Erundina, seu partido e seu projeto de novo IPTU. Veio-me à mente então, num raio, uma cena vista por mim da campanha eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, poucos dias antes das eleições, com “Seu” Ivonildo, mulher e filhos agitando bandeirinhas na Paulista, entusiasmados, à passagem de uma carreata do Maluf, camisa e boné do candidato. Não agüentei. E num instante de raiva, dedo espetado no peito do “Seu” Ivonildo, apelei: “ – “Seu” Ivonildo, me diga uma coisa, quantos imóveis o senhor tem em São Paulo?” Refletindo sobre esses dois episódios e seu significado, verifico como é difícil, para as pessoas das camadas médias – mesmo com educação superior- e das camadas mais pobres da sociedade civil identificarem qual o lado político que se identifica com o seu verdadeiro interesse. A elite, a camada rica e privilegiada, jamais se equivoca. Em qualquer situação política, ela sabe sempre quem defende de fato o seu interesse e se posiciona logo a favor. Mas as classes subalternas não, muito ao contrário. Submetidas a uma intensa desinformação orquestrada pelos meios de comunicação das elites ricas, elas se confundem, se perdem na paisagem política, e terminam votando contra os seus próprios interesses. Aí está o campo fértil para a ação da direita. Lamentavelmente!

Atividades Recentes

Acompanhe nossas atualizações!
Link

>> Understanding Global Governance through Public Action: Neo-Corporatism and Internationalization of Public Policies as its Bases

This scientific paper explores global governance as a political process shaped by the increasing complexity of social relations in the 2...
Link

>> ACCIONES PÚBLICAS PARA COMBATIR LAS DESIGUALDADESMIENTRAS LA PANDEMIA.UN ESTUDIO SOBRE LOS ESTADOS DEL NORDESTE DE BRASIL

El artículo tiene como objetivo identificar las políticas públicas implementadas por los gobiernos estatales en la región nordeste de Bra...
Artigo

>> ACCIONES PÚBLICAS PARA COMBATIR LAS DESIGUALDADES MIENTRAS LA PANDEMIA. UN ESTUDIO SOBRE LOS ESTADOS DEL NORDESTE DE BRASI

El artículo tiene como objetivo identificar las políticas públicas implementadas por los gobiernos estatales en la región nordeste de Bra...
Artigo

>> Understanding Global Governance through Public Action: Neo-Corporatism and Internationalization of Public Policies as its Bases

This scientific paper explores global governance as a political process shaped by the increasing complexity of social relations in the 2...
Filme

>> Ainda estou aqui

O filme narra o desaparecimento do Deputado Rubens Paiva na ditadura militar e os impactos em sua família, com destaque especial sobre a...
Link

>> USP LIBERA MAIS DE MIL LIVROS

Portal de Livros Abertos da USP (Universidade de São Paulo) da acesso a mais de 1.100 livros gratuitos. O portal divulga livros acadêmic...